sobre
Antes que a lua enfarte [2024]
obra
poética de Rogério Salgado
Poética
enquanto uma voz de Sabedoria
Introdução
A
Poesia vem a ser uma voz ancestral que se manifesta em coletivo e num
contexto. Somente com o avanço da civilização, e o processo de
individuação e de introspecção, passou-se a um fenômeno pessoal
de leitura silenciosa. Toda poesia era coletiva e performática.
Muitas vezes ligadas aos cultos de magia e fertilidade. A voz do
Poeta era a voz de um ancião, um sábio, um xamã, um eleito dos
deuses.
O
Poeta enquanto Sábio, enquanto doador da Sabedoria, é a figura viva
de um líder místico, a trazer verdades de um mundo além, cheio de
revelações. A pessoa do poeta enquanto xamã é marcada pela
maturidade, pela idade avançada e pela experiência acumulada. A voz
da experiência se derrama sobre a audiência de neófitos, os
inocentes do conhecimento, ainda cheios de expectativas, presas
fáceis do destino – já domado pelo Sábio.
Arte
para o artista é criação a partir de si mesmo – tecendo teias de
palavras, acumulando matizes de cores, moldando formas novas – e,
no caso do poeta, do cantor, do escritor, é criar uma voz peculiar,
marcante, estilosa. Mesmo a escrever sobre o passado, o finado, o
desfeito, sua força criativa na vivacidade – esforço novo pela
re-criação, inovação, surpresa, ir-além de expectativas.
Assim,
o poeta e crítico literário britânico Alfred Alvarez
[1929-2019], em seu The writer's voice [A voz do
escritor], defende que "escrever é literalmente uma arte
viva e também criativa. Simplesmente não acontece de os escritores
'pararem, inertes, como um espelho da natureza', criando assim uma
imitação da vida; o que criam é um momento da vida em si."
[2006, p.19]
A
voz de sabedoria do Poeta atua como um testemunho da passagem do
tempo, diante do processo de maturidade, que exige um olhar para
trás, onde desfila o passado, que precisa ser recuperado após uma
introspectiva 'busca do tempo perdido' como encontramos nas obras dos
romancistas Machado de Assis e Marcel Proust, e também do
memoralista Pedro Nava, que ousaram resgatar o 'tempo perdido'
transmutando-o em criação literária.
Ao
comparar as escritas e as obras de Machado e de Proust, o crítico
literário Paulo Venâncio Filho, em seu Primos entre si,
aponta a questão do tempo, a passagem do tempo, como um dos
componentes principais da estrutura.
"Entre
o tempo que agimos e o tempo que pensamos, entre o tempo que vivemos
e o tempo que recordamos, existe um descompasso, um desnível
vivencial. A vida é rápida e curta, o pensamento lento e
infindável; como se houvesse um desajuste entre a vivência e o
tempo, somos ultrapassados por nós mesmos. O passado é uma
construção de equilíbrio precário. [...] Cada vez mais diminui o
tempo para que os indivíduos se deem conta dos seus
atos, pensamentos e sentimentos. Cada vez mais diminui o tempo do
Tempo, o tempo para o Tempo." [2000, p. 102]
Nova
obra do poeta Rogério Salgado
A
obra de maturidade "Antes que a lua enfarte",
lançada agora em início de 2024, mas escrita em 2022 e 2023, é uma
espécie de um "em busca do tempo perdido" do poeta
fluminense-belorizontino Rogério Salgado, o "poeta ativista",
em suas quatro décadas de carreira jornalística e literária, onde
a total sinceridade transborda e deixa confundir obra e autor,
escrita e vida.
É
fundamental a consciência da passagem do Tempo enquanto mestre e
tutor do Poeta, e o Tempo que confere um peso sobre os versos líricos
e profundos dos poemas, assim de um belo poema tal qual "Tempo",
que traz uma forma drummondiana, a voz do poeta maduro,
O tempo segue a estrada
e a gente vai ficando para trás
nossos cabelos se enevando
e o frio na alma que aquece a
imaginação
esse cinema que já assistimos
mas não fugimos de uma nova
sessão.
[pp. 52-53]
O
tempo passado, o passado perdido, que é fonte de tristezas e
alegrias, remorsos e nostalgias. Mas sem o tempo passado o artista, o
poeta não teria experiência para falar de si mesmo e dos outros,
todos colegas viajantes no mesmo fluxo do tempo, que arrasta tudo e
todos rumo ao futuro.
Há tempos / em que o tempo
temporariamente volta
...
Há tempos no meu coração
coisas que me fazem um pouco
triste
pela certeza que o passado
passou
[...]
[Aqueles tempos, pp.
68-70]
Em
sua maturidade biográfica e autoral, o poeta Rogério Salgado
alcança a maturidade e a fleuma de um Carlos Drummond de Andrade em
sua constatação de que o passado – e aqueles que passaram –
ainda estão presentes e vivos nas lembranças cultivadas
carinhosamente. Salgado lembra dos amigos e parentes que já
partiram, muitos sem sequer se despedirem – em época de pandemia e
de desgoverno.
Cada dia que passa incorporo
mais esta verdade, de que eles não
vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão
intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez
deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não
nos desola.
[...]
[CDA, Convívio, p. 85; in
Claro Enigma]
Assim
tal como se manifesta a voz de maturidade a la Claro Enigma,
temos a voz politizada, sem ser partidária, de um A rosa do povo,
"Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos."
com um protesto poético contra as desigualdades sociais e as
opressões políticas de des-governos genocidas,
Antes que me enganem
antes que coturnos andem
sobre nossas cabeças
não vou esmorecer.
Não acredito em generais
muito menos nos animais
que nos discursam
mentiras
verdades para muitos.
[Prece, p. 32]
O
poeta tem esperanças na justiça – seja terrena ou divina –
contra os desmandos e descasos públicos e até tentativas claras de
desordem política e subversão da ordem democrática, como os
eventos de depredação e violência no dia 8 de janeiro de 2023, com
o vandalismo dos ‘cidadãos de bem’ avançando sobre prédios da
Praça dos Três Poderes, em Brasília DF.
mas a justiça que não é cega
fez escorrer para os cárceres
da história
multidões alienadas
que já não podem contar
com seus deuses de barro.
[Naquele domingo, p. 25]
O
Poeta não transforma sua poesia em protesto ou panfleto, pois está
plenamente consciente dos limites da poética e do trabalho formal de
congregar discurso e técnica, a mensagem e os símbolos, sempre
imerso em imagens densas e desconfortos existenciais que esperam ser
desabafados em palavras urgentes, mas antes talhadas em sua estética,
Versos são imagens do que
somos
ao nascermos novamente
nas linhas de um poema simples
como todos os prováveis poemas
que deixaremos para o futuro
dos que virão nos ler um dia.
[Verbo transitivo, p. 47]
Os
limites da Poesia são aqueles da Linguagem – que contornam nossa
visão do mundo, emoldurando nossas expressões e deixando muitos
‘ruídos de comunicação’ – que é criação humana e
humanamente está sujeita às metamorfoses culturais dos coletivos
humanos. A Linguagem não consegue dizer tudo – e a Poesia se
esforça na “luta mais vã” para extrair água limpa da
rocha. Mil coisas estão fora dos versos e rimas dos poemas, mil
preocupações e “o preço do arroz”, mas o Poeta sabe que
o poema em si contém seu próprio universo. Sim. O Poema apenas pode
falar do poema.
porque no poema cabe muito:
a preocupação alheia
a necessidade de se doar
e se fazer irmãos
numa comunhão com Deus
não importando se acreditamos
ou não.
No poema cabe a humanidade.
[O que cabe no poema, p. 27]
Conclusão
É
assim que, mais do que beleza, os poemas de Rogério Salgado, em
Antes que a lua enfarte, trazem Sabedoria. O Poeta tem muito a
ensinar e vem compartilhar sua experiência de vida conosco.
Sinceridade e verdade sempre em seus versos. O poeta Rogério Salgado
é, assim, a voz da Sabedoria numa poética que reescreve e atualiza
sua obra literária – para um momento de crise existencial,
cultural e política.
Consciente
de sua importância na cena cultural de Belo Horizonte / MG, o poeta
Rogério Salgado não brinca em serviço, a sua labuta constante. Ele
não perde tempo e não quer confiscar o tempo de leitoras e
leitores. Não é seu objetivo contar entre vanguardistas e
beletristas. A Poesia não é um beletrismo, de semideuses em ‘torres
de marfim’, mas uma ‘mensagem numa garrafa’ que alguns terão a
oportunidade de ler. A Poesia é para quem tem olhos para ver e
ouvidos para ouvir. A Poesia é para quem merece.
Poesia exige maestria / uma
regência orquestrada /
com partituras verbais / e
muitas notas musicais /
burilando o que será escutado /
numa sinfonia silenciosa.
[Sinfonia silenciosa, p.
19] .
Jan24
Leonardo
de Magalhaens
Poeta,
contista, crítico literário
Bacharel
em Letras FALE / UFMG
Canal
Youtube LdeM Literatura Agora!
.
Referências
ALVAREZ,
Alfred. A voz do escritor.
trad.
Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização
Brasileira, 2006.
ANDRADE,
Carlos Drummond. Claro Enigma.
São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
____________
. A rosa do povo. 46 ed.
Rio
de Janeiro: Record, 2022.
SALGADO,
Rogério. Antes que a lua enfarte.
Belo
Horizonte: Vereda, 2024.
____________
. Poeta Ativista. Belo Horizonte:
RS
Edições, 2015.
VENANCIO FILHO,
Paulo. Primos entre si.
Temas
em Proust e Machado de Assis.
Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
.: