sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

sobre Zuns Zum Zoom - de Luiz Edmundo Alves




sobre Zuns Zum Zoom [BH: Anome Livros, 2012]
do poeta Luiz Edmundo Alves

Poética entre o fingimento e a confissão


Fingi-dores


Na poética, assim como em qualquer fala ou texto, temos alguém que expressa algo sobre si mesmo ou sobre outro ser (real ou imaginário), temos quem enuncia e quem ao qual o enunciado faz referência, assim tecnicamente temos o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. Por exemplo no verso “Eu caminho sobre as águas”, temos o enunciado cujo sujeito é o que diz 'eu' , mas certamente não é o poeta, a pessoa, o sujeito da enunciação, que não é exatamente capacitado a perambular sobre superfícies aquosas.

O eu do poema é o autor ou não? Apenas quando o sujeito do enunciado se confunde com o sujeito da enunciação – e, para maior efeito, o leitor assim espera: que as dores do texto sejam aquelas do autor. Quando o poeta diz “Sou o caminho até o céu e o inferno”, o leitor espera que assim seja, que seja o 'eu poético' o poeta, o 'eu autoral', ser sublime a transcender bem e mal, paraíso e pecado, acima e abaixo do singelo leitor, sempre em busca de guia e iluminação, a espera de visões e delírios – é para isso que existe poeta: ver o que não vemos, fazer os desatinos que não ousamos, vivenciar o que desejamos e tememos.

Se o leitor não 'força' a junção sujeito da enunciação (autor) com o sujeito do enunciado (eu lírico) sente que o poema perde efeito: pois quem mais será este EU no poema se não o/a poeta? Ou o/a poeta anda a simular personagens? A incorporar entidades? O poeta é médium além de ator? Este fingidor de dores num mosaico de palavras...


Na folha o/a poeta, com seu disfarce de eu lírico, vem fingir as dores que ele/ela sofre. Por outro lado, o leitor é um fingidor também. Ele finge que a dor lida – a dor do poeta, do eu lírico – é sua dor, e chora e geme e sofre com o poema, aquelas palavras numa folha. É meio dramático o par – autor e leitor – pois ambos atuam numa peça de eu sofro, vou fingir sofrer, você sofre, vai fingir sofrer – seja lá o que for 'sofrer'...

O autor quer provocar um efeito, usa técnica e confissão, mas não controla o efeito sobre o leitor – que pode ir em consonância mas também dissonância. Um poema criado para irritar alguém, pode agradar a outro. Um poema de amor que encanta uma ilustre musa, pode causar efeito zero sobre um ativista militante engajado nada lírico.

O fingimento deve ser aceitável. Mais do que isto, deve ter efeito. Fazer o leitor esquecer o fingimento. O bom poema causa efeito, não deixa o leitor indiferente. O bom poema consegue nos comover, ou irritar, provocar uma catarse, levar a uma outra cosmovisão. Um bom poema pode nos converter – ao Redentor ou ao Niilismo. Poemas que nos fazem amar e odiar, mas nunca passam despercebidos, nunca ignorados. O poema, com seu efeito, será sempre (re)lembrado.

É agora clássico o exemplo drummondiano “no meio do caminho”, poema que tem admiradores e detratores, mas que, por seu efeito, não deixa de ser relido, seja para elogios, seja para ironias. O pior para um poema é este passar despercebido, como se não existisse, como se jamais escrito. Uma folha branca.


Provocando algum zum-zum-zum

Para encher as folhas em branco de Zuns Zumm Zoom o poeta Luiz Edmundo Alves explora certas facetas de sua visão poética ou de sua vida pessoal em eixos que ora destacamos. A presença dos metapoemas é esperada, o fingimento às vezes é declarado, estamos diante de jogos de palavras. Então, eis o poeta a explicar que escreve poemas e quais as suas motivações. A temática da vida pessoal fornece boa matéria-prima para poemas confessionais – até longos poemas confessionais – pois o poeta ousa um resgate dos meandros da memória. Em ambos os eixos o poeta se entrega ao exercício de auto-observação.

É explícito o papel da memória e suas atuações para a paz ou para a aflição, em dado momento de olhar para trás, para o que foi vivido. Encontramos o poeta enquanto vítima de fluxos de memória involuntária, tal qual um Proust em busca do tempo perdido, ao degustar um bolo, ou emocionar-se com um solo de violino, ou vislumbrar uma cor,

tenho uma
memória nos olhos,
que às vezes ativa-se
com uma cor, agora
estou ativado pelo amarelo.

p. 20


tenho
uma memória
evocada pelas perdas
que me embaralha as
emoções e depois me
distribui para o
jogo cotidiano

p. 14


tenho umas lembranças
coladas em meus ouvidos que
às vezes floram com
o canto do bem-te-vi.
Simultaneamente as
lembranças afloradas:

p. 33



É assim o poeta vitimizado pela memória involuntário, que o lança, sem mais nem menos, do agora para um passado não-cicatrizado, numa condição de embaraço entre o ser-agora e o revivenciar-pela-recordação, num estado de indefinição, no qual o eu lírico flutua entre o falar e o silenciar,


tenho uns ferimentos que mantenho
ocultos. Expor ferimentos fere mais.

p. 16


dentre tantas palavras
o q dessas palavras
dentre tantos silêncios
n coisas pra dizer

p. 46



Não é fácil viver entre o falar e o silenciar, ou melhor, entre as memórias e o esquecimento, entre o que sabemos e o que nem gostaríamos de saber, afinal, algo vem sempre ferir, um ato, uma palavra dita inconvenientemente, um não quando deveríamos ter dito sim,


não insisto: recordar e escrever
é mesmo da ordem dos sentidos,
calar e esquecer também.

p. 15

penso no futuro,
penso no passado,
naquilo que perdura,
no que não sei, e no
que esqueci para me
proteger.

p. 22


Em 'esqueça-me' (p. 45) o eu-lírico, ou o poeta, é ambíguo, quer ser esquecido, quer ser lembrado, deseja evadir-se de outro eu, mas ser resguardado nas profundas lembranças do amor de outrora,

esqueça-me numa rosa de prata barata,
ou quando desejar que a semana voe,
que o pensamento voe

[…]

hoje que não mais me quer.
esqueça-me,
e guarde-me em seu esquecimento.


Para manter tal senso de localização – onde ele vive, onde ele se relembra? - é preciso recorrer a observação de si mesmo, a recolher os fragmentos de agora e de outrora, e imaginar-se um indivíduo (fábula que narramos para nós mesmos diariamente). Ao observar-se, não falta ao eu poético uma certa auto-ironia, diante de uma figura meio risível, meio amarga. Assim é em 'cadê meus óculos' (p. 53), onde o acessório se torna até essencial,

cadê meus óculos?
perdi meus óculos e,
com eles, a nitidez das coisas.
sem eles eu converso mal, distingo mal,
respiro mal, eu mal entendo o que está ali,
o que está lá. tá, tudo está lá e ali, sim, tudo
embaçado, desfocado, impreciso. Eu preciso
de meus óculos, preciso, para precisar melhor,


A auto-ironia, o brincar consigo mesmo e suas limitações, está lado a lado com o divertir-se com as palavras, que causa um efeito de desabafo, pois é no ludismo em jogos com as palavras que o humor lúdico do poeta se revela, segundo ele – eu poético - confessa no poema da p. 29, vejamos,

meu divertimento é
da ordem do poético e
da imaginação,
tem o brincar das
palavras e das
ênclises inesperadas bem
na palma da página.
quando meus olhos
avançam sobre as
palavras eu brinco,
me dobro em brincar.


e se evidencia em outros poemas, que deslocam palavras não por semântica, mas por sonoridade, por figuração na página, rumo – muro por anagrama, ou muro – escuro por rima, ou turvo – turvam-me por mudança de classe gramatical (adjetivo para verbo), dentre outros processos, ou, digamos, jogos,

sem rumo
eu e o muro que
nos ampara

arrisco
pulo esse muro
e caio no escuro

paixão escura
mundo turvo
turvam-me.

p.41


Ou em listas de palavras que se evocam, ecoando umas e outras, segundo lembram alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos, Affonso Ávila, ou Affonso Romano de Sant'Anna, onde palavra atrai palavra não pelo sentido (semântica) mas pela semelhança ortografia, pelas arbitrariedades fonéticas e morfológicas do idioma,


as assonâncias
os assuntos

as arrivistas
os arquétipos

as uvas
os ovos

os milhões
as migalhas

os cântaros
as cantoras


p. 48


Além do Eu – seja o poeta ou não - a presença do outro surge como que espelhada – i.e., em função do Eu – para objeto de percepção, para o amor e para o insulto. Pois temos um discurso literário autocentrado, voltado para si mesmo. O outro é a musa, é a mulher amada – até nomeada – mas sempre em função do Eu, centro do mundo. Então pode-se pensar mais: e há algum contexto social? alguma política? algum protesto? Um resto de ideologia? Ou acabou-se mesmo a fala engajada?

Os poemas em prosa ( pp. 43, 47), claramente voltados para um outro, dirigidos ao outro (objeto de desejo) mostram o umbigo do eu lírico bem aflorado, pois é dele que tudo parte e para tudo se converge. O outro é projeção, é imagem onírica. Já falamos sobre isso em outros ensaios. O amor que o eu expressa, promete, delira, não convence, pois sequer imaginamos a Amada além do delírio do Eu. Não se trata aqui de romance de cavalaria, nem bardos românticos. Então onde o eu lírico se sobressai (além dos metapoemas) ?

No jogo, o locus da confissão


Em Arritmia, entre a escrita e a perda, o poeta Luiz Edmundo Alves se mostra além das convenções do sujeito lírico. São sete páginas de denso poema em prosa, com transplante do sentir para o escrever, em ritmo emotivo e jogos de palavras, dor e técnica entrelaçada. É o sofrer do poeta se transmutando em lirismo. A dor do poeta é uma dor humana, pessoal, mas também pode ser matéria-prima para uma estética, onde se amalgama lirismo e tecnicismo. Não só de sentimento, não só de movimentos lúdicos se constrói o efeito poético. Mas é preciso a alquimia. Caso contrário, o poema é um gigante com pés de barro e ferro fadado a queda no ostracismo.

Pois “um poeta se faz e se desfaz por um desejo de linguagem no limite da língua. No limite da língua o poeta encontra o poema e se faz. O poema é a identidade essencial do poeta.” assim revela o autor, em página anterior ao fluxo lírico de Arritmia. É uma forma de nos lembrar da condição do poeta: entre a potência e entre a desistência. O poeta pode fazer o poema – mas será o poema que o poeta desejava fazer?


eu escrevi livre e infeliz. colhi e selecionei palavras, escrevi fácil e
difícil, certo e errado, feliz escrevi. escrevi quando tive outra
alternativa, quando não tive qualquer alternativa no amor na tragédia
na multidão no rumo no gesto no desamparo.
escrevi e nem senti que tanto doeu.


Ao escrever é que o eu lírico se encontra – para a redenção ou para a perdição – enquanto tentativa de convergências – do ontem e do hoje, do eu e do objeto de desejo. Mas acima de tudo, aqui, o encontro com o outro, o Pai, aqui o Pai Ausente, que simboliza a perda, tanto fisicamente quanto freudianamente dizendo, quando o filho deve assumir a vida (se já não o fez antes...),


escrevi quando perdi meu pai, quando chorei meu pai, quando
procurei e não encontrei meu pai, quando meu pai era tudo o que eu
precisava pra chamar de pai pai pai pai pai pai pai . ei pai cadê você
pra me responder pra me explicar para me amparar para me parar. pai


Ainda em Arritmia temos o jogos de palavras, encontramos um escrevi no muro no namoro na moral namorada na morada, mas não é lúdico que é o prato principal do menu. A degustação aqui exige mais, tem exigências de outros paladares. Quiçá, o autor demonstrasse mais conteúdos de fina culinária na primeira parte, mais voltada para a própria poética, em metapoemas vislumbrando as reentrâncias do umbigo. Esperamos que a próxima obra do poeta Luiz Edmundo Alves seja um amplo e irrestrito Arritmia, não apenas uma segundo parte, ou apêndice, não apenas para mais algum zum-zum-zum, mas expressão de ser autoral, enquanto ser leitor, enquanto confissão de voz humana, conscientemente poeta e fingidor, escrevendo indignado revoltado insultado, e com raiva e arrepiado, com plena consciência do efeito.



jan / 13


Leonardo de Magalhaens





mais info em










vídeo do lançamento do livro




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